11 abril, 2006

Torreira


Foto retirada do Site da Junta Freguesia Torreira






Cruzámos o temporal em marcha lenta. Às apalpadelas. O desconhecido é assustador, ainda mais quando vamos tocados a vento e com a chuva a impedir um olhar mais atento. Mais limpo. As águas da ria - que em Aveiro andam mansas - passam a correr na Torreira, num rumor de borrasca que naquele dia prometia durar a noite toda. Pura ilusão - mais uma. Quando entramos no quarto para um repouso desejado, deliciados com a beleza das coisas mais simples, já as águas beijam a varanda da Pousada (da Ria), lentas e respeitosas do silêncio que procuramos.

As descobertas têm um encanto no próprio ritual. É a isso que nos dedicamos quando acabamos as formalidades da recepção e entregamos as malas ao quarto tranquilo.

Há uma sala larga, com vidros gigantes que servem de miradouro para a ria. A lareira vai devorando madeira e devolvendo um suave calor, que nos conforta o corpo cansado e nos amolece ainda mais. Há uns imensos sofás, de tecido colorido já coçado, que são muito confortáveis. Umas almofadas fofas e uns cadeirões de verga. As madeiras e a pedra que revestem as paredes - onde há moliceiros em miniatura pendurados, pois claro -, e os estores de palhinha, completam um cenário muito bonito e confortável. No mesmo piso, mas numa outra sala ao lado, há ainda uma pequena lareira enquadrada por um minúsculo sofá e respectivos cadeirões - que, no caso, são cadeirinhos. Se descermos uma curta escadaria estamos num bar imenso, com uma pequena, agradável e silenciosa sala de jogos. O xadrez está gasto e em sossego. As casas de banho estão impecavelmente limpas.

Resta descobrir o quarto. Há-de ser pela manhã, quando o sol nos entrar pela janela sem pedir licença, bem cedo, que vamos descobrir a beleza de um espaço simples. O encanto, tal como o diabo, esconde-se nos detalhes.

As paredes são claras. A cama, em madeira, está propositadamente mal pintada num tom muito suave de castanho. O resto do mobiliário, também ele intencionalmente sem primores de pintura, é branco. Não está sujo mas parece. É mesmo assim. A longa janela é linha de fronteira para a fria varanda de pedra, e linha de passagem para uma visão que nos deslumbra e nos devolve a paz que o stress insiste em roubar. Maldito stress!, hoje ficas lá fora. As águas ainda estão levemente tingidas de castanho, mas correm tranquilas no canal e mostram bancos de areia cheios de actividade. Há uns homenzinhos, de galochas e oleado, que andam a pé, em busca do que a ria lhes dá, e uns barcos a motor que passam apressados e cruzam o espelho prateado das águas da Torreira. Os moliceiros, coloridos, e que servem de emblema à região, estão num baloiçar suave, embalados pela turbulência das ondas que nascem na pressa dos barcos que passam. O enorme cordão dunar, ao fundo, é morada para uma vegetação característica e para uma bicharada irrequieta: garças, patos, galinhas-de-água e mergulhões. Belo som que nos mandam sem pedirmos. Sabe bem tanta tranquilidade. Bela escolha que fizeste, gostei da surpresa. Pensei que brincavas quando disseste que me levavas para o paraíso. Não deve andar longe, o verdadeiro.

Tomar o pequeno almoço com uma visão idílica, em marcha lenta, é um tónico irrecusável. Amanhã já falamos deste momento com uma saudade imensa, é melhor aproveitarmos agora que cá estamos. Viver agora para recordar depois. O dia está solarengo, a luz, imensa, entra por todo o lado e torna as cores mais fortes e presentes. Lindo dia num sítio fantástico. Os empregados são gente calma, tranquila, simpática e profissional. Nada nos falta, nem um sorriso. Devolvemos a chave com o peixe de madeira a segurá-la na boca, e já se nos aperta o coração. Apetece ficar umas semanas. Entrar arrasado e sair novo em folha. Ainda espreitámos o menu regional da Pousada, mas já decidimos que vamos à Costa Nova provar o arroz de marisco da Praia do Tubarão. Ainda estou indeciso. No menú sucedem-se as tentações com nomes simples; caldeirada de enguias, espetada de mexilhão, feijoada de leitão e ovos-moles para a sobremesa. Ficamos ou seguimos? Não ficamos, ficamos para a próxima. E vai haver próxima, que não reste a mínima dúvida. Gosto sempre de estar contigo. Mais ainda no paraíso, ou perto dele.

A Torreira está ligada à arte xávega desde o séc. XIX. Empresas proprietárias de juntas de bois que puxavam os barcos e as redes para terra. Já há mais de cem anos empregavam cerca de sete mil pessoas. A faina, diária, obrigava ao arrasto permanente de barcos com quase meia centena de homens, e redes com mais de 15 metros de comprimento. É da água que vivem os donos da ria, é nela que se divertem nas férias. São de boa memória as festas, em Julho ou Agosto, com a regata dos típicos moliceiros, que termina em Aveiro. Mais abaixo, junto a São Jacinto, com Aveiro à vista, há uma Reserva Natural com quase um quarto de século. É morada permanente da raposa e da gineta, e ainda de outros animais; lagartixa, cobra-de-água, rola-brava, pato-real, mergulhão, garça, pato-trombeteiro, e os raríssimos pato-de-bico-vermelho e frisada. Bicharada que se esconde entre os canaviais, a pateira, as dunas e a floresta.

Já rolamos pela estrada - encharcada e brilhante -, rumo à Costa Nova. Estamos perto, mas a configuração das dunas obriga a uma viagem de alguns quilómetros. Vamos à volta porque não há passagem para as famosas praias de Aveiro, que ficam em linha de vista. Os terrenos que ladeiam a estrada estão encharcados. A ria que sobe, e a chuva que não pára, ensoparam as terras. Há casas com lagos no jardim, e jardins que alagam as casas. Há moliceiros com pinturas de muita arte, salinas que queimam os pés descalços de gente com a pele torrada pelo sol, há ovos moles em anúncios de supermercado, peixe para todos os gostos oferecido em frases brancas na ardósia preta e muita água no horizonte. E há uma Pousada da Ria, na Torreira, que já ficou para trás mas que não me sai da memória. Fui sem saber para onde ia, e agora sei que lá quero voltar. Contigo, claro! É contigo que me sinto sempre melhor, mesmo nos sítios piores.

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