11 abril, 2006

Santa Cruz


Praia de Santa Cruz
Região de Turismo do Oeste

As praias são como os chapéus -há muitas -, mas a verdade é que nem todas nos asssentam à medida. Catorze anos depois de ter aterrado pela primeira vez em Santa Cruz já não passo sem uma visita regular ao litoral oeste. E há outras coisas que já não dispenso: as fantásticas tostas de galinha do bar da Praia Azul, o Arroz de Marisco do Restaurante do Humberto, os grelhados do Barracão, um gelado no italiano Andrea nos dias mais confortáveis de verão, um cafézinho com vista para o mar na esplanada do Marés Vivas, um Irish Coffee no Bar do Manel nas noites mais agrestes, o típico Carnaval de Verão e o resto...tudo o resto.


Não há muitos locais - neste pequeno e por agora deprimido país - onde em poucas horas se assiste ao passar das quatro estações. E nem sempre aparecem com a ordem natural. Podemos começar o dia num inverno rigoroso e ter uma tarde solarenga, sem muito calor, com laivos suaves de um verão que nunca é constante. Nunca foi. Santa Cruz é terra de gente simples e tranquila, mas de clima temperamental e incerto. Quem gosta não falta, quem não aprecia evita o mais possível, e não entende o gosto por um local onde o sol e as nuvens nunca parecem entender-se o tempo suficiente para dar nome a uma estação. Mas há coisas de que não se gosta logo, não nos apaixonam no primeiro olhar, que nos vão cativando à medida que os dias passam e que se tornam insuportáveis na ausência. E Santa Cruz, elegante e sensual, pode não nos levar à certa logo no primeiro dia, mas vicia à medida que vamos coleccionando horas de prazer, junto ao mar, com rituais que são como a Coca-Cola - primeiro estranham-se, depois entranham-se.

Em Santa Cruz há dias que parecem noites, e noites tão amenas de fazer inveja a esses dias, mas também há marés calmas e dias com um sol radioso. Esses acabam depressa como qualquer uma das coisas boas que saboreamos na vida. É o mal das coisas saborosas, vão-se embora quando nos fazem falta e nunca chegam para nos adoçar os piores momentos, azedam ainda mais as ausências- são as saudades.



Praia de Santa Cruz
Região de Turismo do Oeste


É nos dias claros que me sabe melhor fazer a "Rota Saloia" que termina no centro da Vila. Um dia ideal pode começar no Restaurante do Humberto. Não se chama assim mas ele merece a deferência - o Restaurante chama-se Praia Azul. É gente boa, só as derrotas do Benfica é que lhe roubam o sorriso mas nunca lhe estragam a simpatia. Como é que apenas hora e meia mal digerida pode dar origem a tantos dias de azia? Ele lá sabe. O Arroz de Marisco é divinal, mas o Alfaquique com Açorda também não lhe fica atrás.É uma questão de gosto, o Arroz mais encorpado no gosto, o Alfaquique mais suave no travo. Nenhum dos exemplos se recomenda a uma dieta sem reparos.

O café pode ser no Marés Vivas. Não é nenhum exemplo de decoração nem há esmero no serviço, mas a vista compensa o que falta. Há uma varanda sobre o mar que se agita com os nervos em franja e os surfistas na garupa. Lá andam, teimosos. Só os melhores arriscam nos dias piores, como massa na sopa - como diz a célebre Mafalda do Quino-, cheios de gana e genica, enganados pelos remoínhos traiçoeiros e pelas ondas que se agigantam. Mas não desarmam. Nem nós. Estatelados nas cadeiras aproveitamos o sol, que vale ouro pela raridade naquelas paragens, e sabemos que a Berlenga à vista é sempre chuva na certa. É o que dizem os velhos, e eles, os lobos de um mar selvagem e pouco dado a carícias, nunca falham. É próprio dos velhos, quase nunca erram, nós é que raramente os ouvimos. Não fosse assim e havia menos desgostos. Os velhos falam e nós, surdos descuidados e imprudentes, amaldiçoamos a sorte- e às vezes sorte é apenas saber ouvir. O silêncio de um olhar ou o murmúrio suave de uma palavra experiente.

Há dias em que saem à rua os maníacos das velharias. Gente que foi coleccionando objectos valiosos que se oferecem agora por tuta e meia, expostos no asfalto. Alguns disfarçam a dor da separação no preço da troca. Nós, insensíveis, queremos sempre mais por menos, regateamos, insensíveis, e bastas vezes nem cuidamos da peça que adquirimos com o desvelo que merece.

A Feira das Velharias é ponto obrigatório na rotina de um fim de semana em câmara lenta. Sabe bem contemplar as peças em silêncio, quase tanto como o que enche a pequena capela da praça, bonita. É dos cuidados e mimos de gente com muita fé. Para quem acredita - e dispensam-se juízos de valor- é um espaço à medida de uma meditação suave e terapêutica: um silêncio quase total entremeado com o rugir das marés vivas e com os gritos das gaivotas. Um silêncio que morre no Verão com o bulício de gente em férias. E se agita ainda mais, em Agosto, quando o Carnaval da grande cidade, Torres Vedras, enche as medidas - pequenas - da pequena vila. Sobra gente para pouco espaço.



Praia de Porto Novo
Região de Turismo do Oeste


Nos dias mais bonitos há gelados de mil sabores no italiano. O Andrea, impaciente e nervoso, gesticula e não cuida dos limites sonoros nas palavras - à italiano -, mas sabe do ofício e faz gelados como ninguém - à italiana. Mas é na Praia Azul que se faz a melhor despedida de um dia que mereça. No bar tosco de madeira, comida pelo vento agreste que sopra com aroma a maresia. Há umas tostas de galinha com receita secreta que dão um sabor especial ao pôr-do-sol, bonito e tardio. É no Oeste que o sol se põem, é lá que os dias se demoram mais nas despedidas. Sabe bem ver os dias a cair e as noites a crescer por cima da linha do mar, que lá longe é mais calmo, e que se ouve sempre num murmúrio espumoso de quem reclama uma quota elevada nos prazeres que nos aliviam as dores, do corpo e da alma.

Noite cerrada aconselha-se um jantar no Barracão, no Paúl, na estrada para Torres Vedras. Não é inesquecível, mas tem uns grelhados apetitosos, e é sempre bom saber que a carne, tenrinha, é escolhida com muito esmero e mil cuidados. O Bar do Manel, no centro de Santa Cruz - já voltámos - parece um navio antigo, carcomido e lugúbre. Mas é quente e tranquilo, agradável. Ideal para uma noite de tempestade. Se a chuva gelada estiver a fazer estragos cá fora, é lá dentro que nos abrigamos. Há jogos, muito antigos, que nos lembram a idade que queremos esquecer - os anos há dias em que pesam muito - e bebidas para todos os gostos. Eu não dispenso o Irish Coffee, a escaldar. Gostos não se discutem. É o que diz o Humberto, o do restaurante da Praia Azul, que é do Benfica.

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