11 abril, 2006

Bairro Alto


Foto André Antunes


Os mais habituados às noites da capital chamam-lhe, intimamente, o Bairro. Para os outros, há que acrescentar Alto, para que se perceba que estamos a falar do topo de uma das sete colinas de Lisboa. O topo onde as noites são mais longas. Onde os dias mostram uma realidade completamente diferente - longe da boémia e da anestesia louca de uma animação sem limites. O Bairro são dois, sem grandes semelhanças; um à noite e outro de dia. A "Fauna" muda depois das 20 horas, e volta a mudar perto das 7 da manhã.


Entre as muitas maravilhas do Bairro, à noite, está a imensa variedade de oferta gastronómica. Nas artes do tempero e na beleza dos espaços. E nas histórias que se contam, de boca em boca, e que são parte da história de um bairro de má fama. Hoje menos. A morte de um jovem às mãos dos cabeças rapadas e as sessões contínuas de pancadaria obrigaram os governos a tomarem medidas. Drásticas. Hoje, no Bairro, há quase um polícia por cada esquina. Não garante segurança máxima, mas permite a dissuasão mínima. Ainda há ameaças, perigos vários e pancadaria para todos os gostos, mas nada que se pareça com o Far West de há uns anos. O Bairro viveu durante muitos anos da prostituição, das casas de fado, da paciência dos vizinhos, dos bares de culto para as várias tribos sociais, das bebedeiras dos betos e das trips dos junkies. E da gastronomia. Lá voltamos ao que nos traz aqui. A comidinha. Até a revista britânica Table Manners e o catálogo Luis Vuitton não conseguiram ignorar os petiscos que andam - e pode dizer-se aqui com toda a propriedade - de boca em boca no Bairro.

Na Travessa da Espera está um restaurante imperdível no roteiro das noites: a Primavera do Jerónimo. Espaço acanhado, muito apertado mesmo - há salas maiores em apartamentos -, mas onde sobra o bom gosto e o apuro no tempero. O que é afinal o mais importante. Franqueada a porta, entramos numa verdadeira casa de bonecas, onde mal cabem sentadas 15 pessoas. A decoração condiz com a história do local, é muito antiga. Entre outras preciosidades encontramos um relógio Kadum - tão antigo que o miolo já não é de fábrica -, um frigorífico com a bonita idade de 50 anos, uma ventoinha fora de época, várias fotos a preto e branco e outros utensílios com muita idade, hoje fora de moda mas que noutros tempos eram sinal de modernidade e sofisticação. A vida é assim, passa depressa, tanto que daqui a pouco, este momento, este preciso momento, já será passado. Entre as fotos atrás referidas, há uma que não passa despercebida. Lá está, sorridente, Josephine Baker. Consta que Juliette Gréco também provou as delícias da casa.



Foto André Antunes

Hoje propriedade de Helena Alves, a virtuosa cozinheira, e do marido, José Rafael, a Primavera era de um Jerónimo, também cozinheiro que andou na Primeira Guerra a tratar dos estômagos das tropas francesas. Acabada a guerra, com o sucesso dessa campanha na bagagem, Jerónimo armou-se de tachos e panelas e mais uns quantos talheres e fez-se ao forno a lenha, em Lisboa. Foi inquilino bem visto no Bairro até 1969. Depois de muitas tropelias do destino, o Jerónimo, restaurante, caiu nas mãos de Helena Alves, 45 anos, transmontana e familiar do primeiro dono do estabelecimento, o tal Jerónimo. D. Lena já é dona da casa desde 1980. São vinte seis anos de gastronomia transmontana com embaixada no coração de Lisboa - e tal como vamos ver daqui a pouco, a visita vale mesmo a pena. Logo em 1982 houve prémio lá na casa, um 2º lugar num concurso de especialidades - ganhou o Leite Creme. E ainda uma menção honrosa nas carnes - com uns magníficos Rojões à Transmontana. Pudera!

Caí lá por acaso, pela mão de um grande amigo e companheiro destas incursões gastronómicas - Deus te abençoe José Galvão. Ainda não sabia mas a garrafeira é seleccionadíssima. Há vinhos transmontanos e do Douro, preferencialmente. Mas existem também aquelas preciosidades que guardamos para momentos especiais. Nós, creio que nos contentámos com umas litradas de Cabeça de Burro. Mas há melhor, muito melhor.

Afiados os talheres e instalados os rabiosques, começaram a chegar os pratos escolhidos. Meu Deus! Não é fácil esquecer o primor e a qualidade daquelas Pescadinhas com Arroz e Salada. Parece coisa simples de nome, mas é divinal de paladar, e complicada de apuro. Há ainda Filetes de Pescada com Arroz de Cenoura, Perdiz Estufada à Serra Morena, Lulas Recheadas e Bacalhau à Braz. Do Cardápio constam ainda uns Lombinhos Fritos de Porco à Moda de Vinhais com molho de vinho e uma Omeleta ao Rum - um prato que já tinha dado a volta à cabeça aos tais soldados franceses.

Consta que, além de várias personalidades do antigo governo socialista de António Guterres, a casa é frequentada por Mário Soares e Miguel Sousa Tavares entre outros. Gente conhecida pelo bom gosto à mesa, cartão de visita garantido para a casa. Noutros tempos, quando a democracia ainda era uma actividade perigosa - perdão, mais perigosa -, os socialistas conspiravam na Primavera do Jerónimo. O PCP preferia a Trave, mesmo em frente. Outros tempos! Mantém-se a qualidade das cozinhas, mesmo sem o forno de lenha.

O Bairro merece muitas elogios e ainda mais visitas. Lá voltaremos! Em breve.

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